quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Geringonça, o véu lexical

Iago Pericot - Máquina (1963)

Deve-se a Paulo Portas o baptismo da actual solução governativa como geringonça. Com o verbo fácil que o caracteriza, confiando no brilho da sua inteligência, mas esquecendo que do outro lado não estavam propriamente idiotas, o ex-líder do CDS decidiu fazer uma pilhéria e, entre prognósticos de catástrofes terríveis, desvalorizar a solução dos adversários políticos que lhe tinham tomado o lugar. A graçola deve ter saído espontaneamente da boca, pois ela teve um efeito completamente contrário ao pretendido.

A direita ficou encantada com o achado e repetiu-o, e repete-o, vezes sem conta quando fala da coligação parlamentar que suporta a solução governativa. A esquerda reagiu à pilhéria com boa disposição e, em vez de fazer de virgem ofendida, nessa altura não faltavam no país virgens ofendidas, tomou aos ombros a designação, brincou com ela e fez-se à vida. Aliás, fê-lo de forma bastante inteligente. Teve a intuição de que o valor lexical da palavra e o valor de uso popular não eram os mesmos.

Lexicalmente, geringonça significa algo pouco sólido e que se desfaz facilmente. Era nisto que Paulo Portas pensava. No entanto, quando alguém diz que uma coisa é uma geringonça retira-lhe de imediato uma tonalidade ameaçadora, capaz de destruir este mundo e o outro. No uso popular da expressão, está presente a pouca solidez, mas, fundamentalmente, uma certa leveza e ausência de ameaça. É algo com que se brinca e que não se teme. Ora o grande risco que António Costa correu foi o do temor que poderia haver em levar o BE e o PCP para a área da governação. A esquerda, ao aceitar a pilhéria de Portas, resolveu o problema. A direita ainda tentou fazer uma fronda contra a solução governativa, mas ficou a falar sozinha. Quem podia ter medo de uma geringonça?

É um mistério a direita continuar a usar o termo para designar a actual solução governativa. Primeiro, porque continua a oferecer uma imagem de leveza à esquerda e a retirar-lhe aquilo que supostamente teria de ameaçador. Depois, porque, passados dois anos, toda a gente percebeu que a solução é sólida e construída com engenho pelos diversos protagonistas. Há ali um grande trabalho de engenharia política, que permitiu não só que o PS reocupasse o centro político, como o BE e o PCP entrassem nesse espaço de moderação, expulsando de lá o PSD. Cada vez que Passos Coelho e os actores e comentadores políticos de direita falam em geringonça estão a reforçar aquilo que querem combater. A geringonça funciona para a direita como um véu lexical que não a deixa ver a realidade.

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