domingo, 6 de agosto de 2017

Descrições fenomenológicas 27. Ruína

Fernando Lerín - Sem título (1998)

Bem ao meio, um buraco negro, quase circular, talvez com uns quinze centímetros de diâmetro, condensa o estado da parede. A antiga brancura há muito que foi ocupada por manchas de humidade, umas mais escuras e densas, outras apenas uma leve poeira de cinza e fungos. Parecem pinturas murais, em gradação de cinzentos, hesitando entre o figurativo e o abstracto, persistindo nessa ténue fronteira que revela uma atracção da própria natureza pelo indeciso ou o desejo de hibridação que o tempo acaba por introduzir em tudo o que toca ao passar. Do lado direito, a tinta caiu, deixando ver o velho reboco, também ele a ameaçar ruir, esfarelando-se em pequenos grãos terrosos. Num primeiro relance, parece o mapa de uma ilha incrustado no oceano cinerário da parede, uma ilha despovoada onde, em tempos recuados, se enterrara um tesouro ou um corpo de alguém amado. A parede une-se ao soalho por um rodapé de mogno mais alto que o habitual. Estranhamente, parece intacto, como se não tivesse sido tocado pelo destino da casa. Batido pela luz vinda da rua, brilha no seu vermelho acastanhado, apenas maculado pelos restos de uma tomada eléctrica, já desprendida da madeira, deixando ver os fios e o seu interior metálico. O soalho, ao contrário do rodapé, parece ter recebido os detritos de um bombardeamento. Restos de tinta, pedaços de estuque do tecto, pequenos buracos, resíduos que se desprenderam das paredes, carreiros de formigas, sinais da presença de ratos. Ouve-se o bater descuidado de uns saltos, os passos aproximam-se, uma sombra e, de seguida, uma mulher ainda jovem, alta, fantasiada de sevilhana. Um vestido vermelho com bolas negras, até aos pés. Encosta o ombro direito à parede e olha a janela do outro lado da sala. Enfrenta a luz com uns olhos enormes e negros, abertos, muito abertos apesar da luminosidade. Naquele olhar, não há nada. Nem espanto, nem medo, nem expectativa. Passados alguns minutos, resvala pela parede e agacha-se, as pernas desenham um ângulo de 45º. Os cabelos escuros, deslizam pelo pescoço e caem sobre os ombros. O cotovelo direito assenta sobre a coxa do mesmo lado e a mão suporta o rosto. O queixo repousa palma e a boca aflora no espaço aberto entre o polegar e o indicador. Na face esquerda, bem abertos, estão quatro dedos longos. Firmes, parecem segurar a face. Ao acocorar-se, o vestido abriu-se do lado esquerdo. Por essa abertura, entrou a outra mão que repousa no seio. As pontas dos dedos parecem pressionar o peito mesmo por cima do coração. Os olhos, ainda bem abertos, ganham expressão. Já não olham para a rua mas para um dos cantos sombrios do compartimento. Foi um longo caminho o do olhar. Da inexpressividade passou pela indiferença e agora é um lago ondulado pelo vento da expectativa. Murmúrios desprendem-se da boca e pairam sobre o lixo do chão e a ruína das paredes. Um floco de tinta desprende-se do tecto e pousa sobre os cabelos, uma mancha branca num fundo negro, tão negro quanto os olhos que expectantes me olham.

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